A lenda e o culto da norma

Por que as pessoas acreditam na justiça como conteúdo das leis? Por que as pessoas devem cumprir as leis e sentenças? Existem bons motivos para que acreditem que o Direito do Estado conduz à materialização de relações sociais justas?

As respostas, convincentes ou não, a essas perguntas remontam aos primórdios do Estado Moderno, quando as edições normativas primária e secundária tornaram-se tarefas estatais.

É certo que os positivistas nascidos de uma dada interpretação da obra de Thomas Hobbes ou criados na cartilha de Jeremy Bentham responderão que as leis são comandos oriundos de uma autoridade que as legitima e que a previsão de sanções é um estímulo e tanto para que sejam cumpridas. O Direito vale pelos seus conceitos de condução mediante sanção.

Dirão, afinados com o esquema neoliberal de organização social, que esse Direito é formalmente perfeito, porque as leis são, em tese, a expressão mais refinada da vontade popular expressa por meio de representantes eleitos, enquanto as sentenças e acórdãos derivam de profissionais selecionados pelo Estado para aplicar o Direito. E para não perder a oportunidade, exaltarão o cognominado Estado de Direito que seria caracterizado pelo rule by the law, not by men. O formal e o conceitual se acasalam na construção metafísica do positivismo e perfazem a manifestação do normativo.

No século XVII, Hobbes, como proto positivista egresso de sementes cartesianas, titulou a ruptura do jusnaturalismo moderno com a totalidade teleológica do padrão aristotélico-tomista. Em seus polêmicos Leviatã e De Cive, usou a razão instrumental formalizada no contrato social para que os homens lobos dos homens, e quiçá de si mesmos, abandonassem o estado de natureza, em que a plena liberdade e a igualdade não bastavam para impedir que o pathos vencesse o ethos. Urdiu um hipotético conclave em que os homens deliberaram pactuar sua própria sujeição ao soberano, negociando aqueles direitos naturais em troca dos direitos à vida e à segurança. E como pacta sunt servanda, a lei do soberano se afirmou como decorrência da autoridade de seu editor e juiz final de sua incidência. A ninguém mais foi dado resistir à lei, porque em favor desta militava a presunção de que, via soberano, era a vontade positivada dos contratantes do pacto de sujeição.

Entre os direitos fundamentais que hoje conhecemos, teria havido, a partir de Hobbes, um escalonamento de valores, priorizando o binômio vida/segurança, em detrimento da liberdade.

Aqui, um comentário se impõe. Por certo, não podemos asseverar que a dignidade da pessoa humana saiu engrandecida desse suposto negócio institucional, na medida em que, por um lado, sem liberdade e sem igualdade torna-se muito difícil viver dignamente; e, de outra parte, a liberdade e a igualdade não têm grande significação na iminência de perder a vida ou quando se vive em permanente insegurança.

Na lição da fábula hobbesiana, os contratantes preferiram o Direito e a Justiça do tertius, como forma de sobrevida. Não obstante o fato de que outros aspectos da teoria de Hobbes demonstram a instrumentalidade do Leviatã para a consolidação dos interesses da burguesia, o fato é que homens livres e iguais não conseguiram vencer seu apetite pela acumulação de bens e, nessa circunstância, preferiram acreditar no Direito e na Justiça do soberano Deus mortal. O Estado, na acepção de Hobbes, nasce contratado para regular, à moda do Direito Privado, relações sociais derivadas de disputas pela propriedade.

Outros apóstolos do jusnaturalismo mais avançado (sobretudo John Locke e Immanuel Kant) contribuíram para o aperfeiçoamento dessa idéia que, no plano superestrutural, se traduzia na edificação de normas imperativas cuja obrigatoriedade deriva da autoridade de seu autor, garantida por uma sanção. Então, chegou o positivismo legal de Kelsen e construiu um sistema puro de normas, desvinculando Direito e Moral, hierarquicamente escalonado a partir de uma hipotética norma fundamental, de modo que a matriz de validade de uma norma é outra norma precedente. O voluntarismo do Estado passou a responder pela autoridade da lei e pela imposição das sanções necessárias à sua observância. A racionalidade formal passou a justificar a aplicação do Direito, mediante silogismos de subsunção de condutas humanas aos padrões típicos da legislação.

Em poucas palavras, desde a emergência do positivismo jurídico, a realidade deve se adaptar ao conceito, sem espaço para considerações “impertinentes” sobre sua justiça.

Não é possível negar que o cientificismo kelseniano teve a virtude de colocar os móveis numa determinada ordem, substituindo os direitos congênitos, derivados da razão ou de uma divindade, pelo culto da norma, no melhor estilo Robespierre. Para que isso ocorresse não faltaram subsídios utilitaristas (de John Stuart Mill, por exemplo) bem como de democratas e totalitários, de Thomas Jefferson a Carl Schmitt, todos apostolando o indissolúvel binômio Estado/Direito.

Dessa forma, a liberdade estritamente conceitual dos modernos ganhou o lugar da liberdade semi-religiosa dos antigos, a veneração da propriedade como extensão do direito à vida virou totem e o homem naturalmente político do tomismo perdeu-se nas brumas da etiologia do Direito, sem espaço para fundamentos éticos mais consistentes, em nome da maximização da vontade individual e da abstração ortodoxa. O valor justiça passou a ser medido pela garantia da propriedade, o Direito continuou a regrar relações de propriedade e o homem passou a ser medido pela propriedade, senão como elemento dela, perpetrando-se sucessivas exclusões de excedentes humanos não decisivos para o Estado, agora titulado pelo capital.

O Direito assim elaborado enalteceu, é verdade, valores que hoje as pessoas prezam e proclamam, mas não definiu seu conteúdo, para que a justiça-instituição pudesse transformá-los em consubstanciação do valor justiça. Instituíram-se corpos judiciais com a finalidade declarada de assegurar o cumprimento do Direito, mas sem nenhum pudor, gradualmente, foi adotado o liberalismo econômico como respaldo da norma paradigmática, enquanto se disseminou uma subjacente crença em direitos fundamentais conquistados. Promoveu-se a positivação dos chamados direitos sociais, mas não sem o sacrifício dos direitos civis correspondentes, de modo que às pessoas restou a alternativa de, pugnando pela observância de uns, concordar com a mitigação de outros.

O pacto hobbesiano repetiu-se, com outra vestimenta. O mito da norma governante ganhou foros de ideal político-jurídico, mas ocultou a crua realidade de que as normas são feitas por homens, aplicadas por homens, interpretadas por homens, descumpridas ou impostas pelos mesmos homens e resultam de relações econômicas entre os homens.

Esse é o retrospecto superficial de uma lenda que se incorporou aos agrupamentos humanos, e tem sido ideologicamente reproduzida, apesar das advertências marxianas e das amargas reflexões de Adorno e Horkheimer. Mais recentemente, as contradições intrínsecas ao positivismo jurídico foram expostas na microfísica do poder, de Michel Foucault, e pela veemente crítica de Michel Miaille ao descompasso entre o estático Direito e a incansável dinâmica da realidade sobre a qual incide, com mais ou menos truculência.

De qualquer forma, apesar de todas as críticas aludidas, não é de hoje que prevalecem o culto da norma, o temor de sua imposição, a inevitabilidade de uma justiça do ter e não do ser, e a lenda do justo conforme as leis do Estado.

FAZZIO JURÍDICO