A fantasia do contrato social

Um obstáculo a mais nessa viagem rumo ao direito no cotidiano é a pré-noção que o sujeito traz de uma sociedade que teria sido forjada a partir de uma convenção ou contrato social. Com a intenção de remover esse óbice, recupera uma visão histórica da sociedade civil, para distinguir nela, direitos e deveres, aspirações e frustrações inscritas na natureza de cada extrato social. E verifica que cada extrato social observa um rumo diferente, que não há convergência nos objetivos de cada um, tornando-se insustentável a emergência de um pacto social.

Uma idéia de contrato que só existe na ficção do direito-norma jamais será encontrado no direito como dado histórico. É baseada numa teoria jusnaturalista que almeja a exaltação do racional em lugar do divino. O jusnaturalismo só substituiu a implementação divina pela incorporação do divino no homem, como se este fosse o mandatário racional da divindade.

Como explica Franz Neumann, é certo que toda teoria jusnaturalista, quer otimista (Locke), pessimista (Hobbes, Spinoza) ou agnóstica (Rousseau), seja conservadora, absolutista, revolucionária ou democrática, é fundada na caracterização do homem como dotado pela natureza de razão. Pelos mais diversos motivos, que as premências burguesas podem explicar, os filósofos do jusnaturalismo, da primeira modernidade, identificaram a razão mandatária da divindade com consenso, escamoteando egoísmos e diferenças ditadas pelo modo de produção.

A fantasia do contrato social racional é abalada pela verificação histórica de que os homens vivem juntos porque precisam trabalhar juntos, porque têm necessidades comuns, porque trocam o produto de seu trabalho, porque vendem-se e trocam-se, e nessa simultaneidade de relações inevitáveis incluem-se como provedores de carências, mas, ao mesmo tempo, excluem-se como titulares de coisas, das quais são meros depositários ou transformadores.

A realidade material produz homens que a transformam, incessantemente, porque produzidos pela necessidade de transformar para sobreviver.

Nesse mapa de contingências em que, outrora, divergiam e convergiam, dominavam e eram dominados, os homens jamais contrataram um todo social que desconheciam, jamais apostaram numa idéia que não atendesse sua pretensão de sobrevivência. Contratar a convivência da qual não poderiam escapar significaria pactuar que o que é continua sendo pelo temor de que venha a não ser.

Só mesmo a ficção de uma supervivência jurídica, estranha ao plano real objetivo, poderia lhes trazer a justificação racional de uma vida dotada de finalidade outra que não escapulir às armadilhas naturais e do próximo.

É certo que não interessa saber se o homem já nasceu egoísta como Hobbes e Maquiavel o concebem, ou nem bom nem mau, como quer Locke, mas, pura e simplesmente, que é dono da sobrevivência compartilhada, que o direito, alavanca do Estado, transformou em superexistência.

Contudo, as normas que invadem o cotidiano não fazem o jurídico, não conferem o dom da supervivência que acalentam. Limitam-se a reproduzir o cotidiano das trocas pelo qual serão transformadas para depois voltar ao reino do normativo e assim por diante. Não há contrato social que consiga controlar essa dinâmica.

FAZZIO JURÍDICO